sábado, 2 de maio de 2009

Sabedoria, resistência e autonomia indígena

O Grito Pacífico apresenta, após a transcrição do resumo da matéria pelo Brasil de Fato, o fichamento de uma sábia entrevista dada por Edson Kayapó, com a colaboração de Miryám Hess; ambos indígenas militantes com boa formação acadêmica. Quem quiser mergulhar mais nestes ensinamentos, vale a pena espiar a entrevista na íntegra. Para isso, é só acessar o link informado.

A LUTA INDÍGENA É CONTRA EXTINÇÃO DA HUMANIDADE

Por Danilo Rara - 27/04/2009

FONTE: Agência Brasil de Fato

LINK: http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/entrevistas/a-luta-indigena-e-contra-extincao-da-humanidade-1/

O historiador indígena Edson Brito, também conhecido como Edson “Kayapó”, está a todo momento pensando na humanidade e na natureza como um Todo. Sabe que o tempo corre contra ele e seus parentes. E tem convicção também que esse tempo, “civilizatório científico-capitalista”, corre contra todos os humanos. Para ele a atual crise econômica é agravante de um colapso civilizatório muito maior, que tem longas raízes históricas, científicas e filosóficas. Trata-se, portanto, de uma grave crise produzida por um modo de vida que destruiu e destrói muitas outras formas de viver, muitos outros modos de relacionamento entre humanos e natureza.

Verdadeiros viveres cuja luta pela sobrevivência mobiliza por inteiro o índio guerreiro que traz em seu nome, Kayapó. Contra um modo de viver “estúpido e suicida”: “veja só São Paulo: quando explico para meus filhos que o Tietê é um rio eles não acreditam: como pode ser se fede tanto? A vida parece não fazer mais sentido, e as pessoas esperam a hora dela acabar, muitas já não pensam mais sequer em ter os seus filhos”. Contra esta barbárie, o historiador indígena traça sua resistência, marcada principalmente por muito estudo: “meu objetivo é desmarcarar toda essa concepção científica e civilizatória, mano! Só preciso ir juntando os muitos fios, as muitas informações que tenho”. E é esta urgência que vive cotidianamente seja em São Paulo (onde hoje faz seu doutorado em “Educação: história, política e sociedade” na PUC-SP), seja no Oiapoque (onde nasceu e também segue atuando).

O mote inicial de nossa conversa foi a recente votação no Supremo Tribunal Federal sobre a demarcação contínua do Território Indígena Raposa Serra do Sol (TI-RSS), na região de Roraima, extremo norte do país. Porém, desde o início Edson fez questão de ressaltar implicações muito mais profundas a partir desta questão aparentemente só indígena: “nós indígenas passamos milênios na Amazônia e conseguimos conhecê-la profundamente, respeitá-la e preservá-la, enquanto a civilização científica capitalista, além de massacrar brutalmente nosso povo, em poucos anos a tem desmatado e destruído progressivamente, como nunca antes”. Para ele há muito tempo a questão indígena deixou de ser uma luta específica dos povos originários pelos seus direitos constitucionais para se tornar uma questão de todos os homens e mulheres do planeta. Prova isso com muitos dados e exemplos.

Em sua opinião, ou a “civilização científica capitalista tem pela primeira vez na história a humildade de assumir seus limites e sua ignorância” sobre uma série de complexas questões – entre elas, a preservação da Amazônia, e a própria relação entre humanos e natureza -, ou estaremos todos fadados à extinção. Nesse sentido é enfático: “o nó da questão, que a sociedade brasileira e mundial precisam entender, é que as terras amazônicas sob o cuidado dos indígenas é uma garantia para toda humanidade. Ao retirar a autonomia dos indígenas sobre suas terras estão assinando a sentença de morte da humanidade”. O alerta aqui tem em vista as 19 condicionantes propostas pelo Ministro Menezes Direito e aprovadas junto com a demarcação contínua da RSS, que teoricamente se estenderia a outras terras já demarcadas ou por demarcar. Na opinião de Edson: “um verdadeiro golpe, inconstitucional, contra a autonomia indígena e de lesa-humanidade”.

Porém, para chegar a tais conclusões, Kayapó deu uma verdadeira aula que começou com seu itinerário pessoal por diversas cidades do país, e foi parar numa complexa discussão sobre conhecimento, espiritualidade e filosofia indígena. Edson fez questão de ressaltar, entretanto, que não é representante legal de nenhum povo indígena, muito menos do movimento como um todo – que é bastante complexo e diversificado. Na entrevista, portanto, há opiniões pessoais, deve-se dizer, de um intelectual indígena. Opiniões que também passaram por uma contundente crítica a grandes empreendimentos na região amazônica, à política de parques nacionais (“na prática uma verdadeira internacionalização privada de nossas terras”), e pela defesa das cotas para indígenas nas universidades do país...

A conversa contou também com as contribuições da geóloga indigenista Miryám Hess, ativista em prol das lutas indígenas que, assim como Edson Kayapó, contribuíram na construção da sessão indígena do “Tribunal Popular: o Estado Brasileiro no Banco dos réus”, realizado em São Paulo no final de 2008.


FICHAMENTO DA ENTREVISTA

1. Escravidão ideológica no ensino médio

“A vigilância e o controle dos nossos corpos e hábitos transformava a vida numa paranóia. Mas, acabou o segundo grau: acabou a relação com a Igreja! Apesar desse alívio, cheguei a quase esquecer completamente que era índio (...). Nunca me propus a ir a psicólogos, nem sei se eles resolveriam, mas foi uma grande questão psíquica para mim.”

2. Politização e reafirmação da identidade indígena

“[Foi através da] militância política de esquerda que fui redescobrir e reafirmar minha identidade indígena. Era louco porque fazíamos, junto com o MST, rituais indígenas dentro da universidade... Os brancos da burocracia universitária ficavam horrorizados! (...) Penso que os marxistas de todas as vertentes são aliados. Mas por outro lado, de forma geral, estão muito distantes da profundidade que tem a questão indígena.”

3. Mascaramento das diversidades históricas do Brasil

“[Constitui uma falácia a] idéia do Brasil como um país de cultura homogênea, essa idéia de identidade nacional única que exclui a diferença e ignora as mais de 190 línguas indígenas praticadas em nosso território (...). Percebi o quanto as pessoas têm uma concepção de história que exclui muitas histórias.”

4. Militância calcada na informação e coragem

“Foram nove anos atuando em várias esferas políticas: movimento sindical (de professores), movimento ambiental (e indígena) – estes dois que eu não consigo separar. E quando você começa a tocar em alguns grandes interesses, com informação e coragem, a reação é muito violenta na localidade... ameaça de morte, agressões físicas etc.”

5. Os parques nacionais são privatizantes e espoliadores

“Sou absolutamente contra a sobreposição de terras indígenas com parques nacionais. (...) É uma verdadeira internacionalização privada das terras brasileiras, por meio de muitas ONGs internacionais corruptas, que praticam biopirataria escancarada na Amazônia. (...) Os vagões e jatinhos não param de entrar e sair carregados (...). Já tentaram me subornar mais de uma vez. Mas o movimento indígena, de forma geral, é contra a política de parques nacionais.”

6. Impactos negativos da mineração e a conivência científica

“O minério de manganês (e o arsênio produzido com ele) devastaram áreas gigantescas, poluindo terras e rios, e causando vários tipos de doenças físicas e psíquicas, no curto e médio prazos. Inclusive o câncer. A gente denuncia, mas sempre tem algum laboratório norte-americano para atestar “cientificamente” o contrário. E aí a “Justiça” acaba acreditando em quem? No nosso povo tradicional e sem escolaridade ou no laudo científico dos gringos?”

7. Cerceamento crescente da autonomia indígena

“As 19 condicionantes aprovadas pelo STF [Supremo Tribunal Federal] (...) demarcam, mas tiram a autonomia e criam um monte de cláusulas e brechas para poderem explorar os recursos que lhes interessam. Essas condicionantes são um verdadeiro golpe, inconstitucional, contra a autonomia indígena e de lesa-humanidade. (...)”

8. A resistência indígena contra os crimes ambientais

“Os Kayapó e os demais povos xinguanos estão dispostos a lutar até o fim (...) no sentido de defesa da Mãe Terra e dos povos originários (...) até o Estado mudar de idéia com relação a estes mega-projetos que se espalham pela Amazônia. (...) [Como exemplo, indígenas e algumas ONGs sérias] vêm denunciando por meio de análises das águas que a cabeceira do Rio Xingu está sendo completamente poluída por agrotóxicos e resíduos minerais.”

9. A autêntica lição de sustentabilidade vem dos índios

“Os indígenas passaram milênios na Amazônia e conseguiram conhecê-la profundamente, respeitá-la e preservá-la, enquanto a civilização científica capitalista, além de massacrar brutalmente nosso povo, em poucos anos a tem desmatado e destruído progressivamente, como nunca antes. (...) Para nós o homem não sobrevive sem as árvores e os animais, é um conjunto em que todos (homens, árvores, animais, rios etc) são seres fundamentais e interdependentes.”

10. Belo Monte e a engenharia perversa da “Eletromorte”


“A hidrelétrica de Belo Monte, é outro exemplo. Desde 1989 os indígenas falam que não querem, que não vão aceitar... Aí recentemente foram aqueles engenheiros da Eletronorte, que os indígenas chamam de “Eletromorte”, para arrogantemente informar que o projeto seria implantado, independente da vontade dos indígenas. E a televisão noticiou com estardalhaço que a índia Tuíra teria tentado matar os engenheiros. (...) Aquilo foi mais um aviso de que estes mega-projetos e estas grandes hidrelétricas nunca são sustentáveis.”

11. A academia costuma produzir teorias descoladas da realidade

“Existe uma dificuldade muito grande dos indígenas se comunicarem em pé de igualdade por causa da barreira da linguagem, e da concepção de mundo mesmo. Por isso a importância dos parentes se apropriarem desse conhecimento acadêmico. (...) Geralmente a academia cria teorias que abstraem e distorcem a realidade. E que são criadas para isso mesmo. Falam de qualquer assunto sem os pés no chão. (...) Não quero virar um acadêmico de gabinete.”

12. A concepção eurocêntrica e “prostituída” da ciência

“Só é considerado acadêmico o pensamento eurocêntrico. A gente quer que a ciência indígena e a ciência africana sejam incorporadas nos currículos. Esta prostituição deliberada da chamada ciência (eurocêntrica) em relação a interesses econômicos remonta à origem do capitalismo, a deturpações fundamentais das concepções científicas do próprio Isaac Newton.”

13. O fracasso suicida do paradigma capitalista dominante

“Se o modelo científico civilizatório capitalista é tão bom mesmo, por que a humanidade está correndo o risco de se extinguir? Ou ela tem pela primeira vez na história a humildade de assumir seus limites e sua ignorância [ou esperaremos o pior].”

14. Os saberes e práticas indígenas ajudarão a salvar o mundo

“As formas de convívio, as tradições e conhecimentos indígenas podem colaborar e até ser a chave para a criação de uma outra sociedade planetária. E quando falo de conhecimento indígena não estou falando apenas do conhecimento de ervas e plantas, mas do conhecimento de organização social (que para mim não se separa do ambiental). As formas de trabalho coletivo, o respeito mútuo, a forma integrada de entender a relações sociais.”

15. A espiritualidade indígena e sua visão holística de harmonia

“O cristianismo separou o espírito e a matéria; aqui é o sofrimento, lá o paraíso. (...) O indígena também tem o seu lugar dos mortos, mas para nós é outra coisa muito diferente, e é muito importante o equilíbrio. O sagrado é a relação entre nós, e entre nós e nosso meio. A relação da mãe Terra com seus filhos é constitutiva, não algo externo. (...) [Possuímos uma] concepção de interdependência constitutiva entre os seres.”


QUEM É EDSON KAYAPÓ?

Edson Machado de Brito é graduado em História (UFMG), fez pós-graduação lato sensu em História e Historiografia da Amazônia (UNIFAP), e mestrado em História Social (PUC-SP). Atualmente pesquisa no programa de doutorado em “Educação: história: política e sociedade”, também na PUC-SP, desenvolvendo uma tese sobre a escola dos Karipuna da aldeia do Espírito Santo em Oiapoque-AP, onde também atua na área de educação indígena e formação de professores.

QUEM É MIRYÁM HESS?
Marília Miryám Hess Rondani é bacharelada e licenciada em Geologia na USP, e pós-graduada em Energia na mesma universidade. Atualmente é conselheira no Conselho da Rede GRUMIN de Mulheres Indígenas (www.grumin.org.br).

1 comentários:

Edson Kayapó disse...

Olá, Pablo!
É bom saber que no meio de tanta mesmice, há a dissidência.
A entrevista "A luta indígena é contra a extinção da humanidade" e a síntese que você elaborou, indica apenas a ponta de um iceberg que a agência Brasil de Fato e bloggs como o seu têm coragem de denunciar.
Pensando a utopia como um longo processo em construção, acredito que seja possível um mundo em que o egoísmo, o indívidualismo, em uma palavra, o capitalismo, faça parte apenas de um passado que a humanidade lembrará enauseada.
A paz no planeta será possível mediante ao respeito entre os povos, e com a garantia de vida para as florestas, rios e todas as espécies de vida.
Hasta la vista.
Edson Kayapó