segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

CRÔNICA: Um Reencontro Boliviano














































Este mês é especial para mim e sem dúvida será um dos mais importantes de toda a minha presente vida familiar. Explicarei porque, resgatando o devido contexto e incorporando algumas reflexões bem-vindas ao propósito extensivo desta crônica.

Em 1975, minha mãe conheceu Adhemar Robles Daza, um boliviano que veio estudar Engenharia Civil aqui no Ceará. Em 1980, a mãe de Adhemar, juntamente com as duas irmãs dele, visitou o Brasil para prestigiar a formatura do filho. E também para convencê-lo a voltar para a Bolívia e lá construir sua vida profissional.

Adhemar acabou voltando à seu território natal boliviano, o Estado (Departamento) de Santa Cruz de La Sierra. Minha mãe, Maria Madalena Pereira de Albuquerque, aqui ficou. Entre os dois, a saudade, a distância, mas também um elo biologicamente comum: um bebê de seis meses e um raio de três centímetros de bochecha em cada lado. Pablo de Albuquerque Robles era o nome da criança, que hoje parece ter as bochechas menos rechonchudas.

Quando eu tinha e um ano e quatro meses, fui com minha mãe para a Bolívia. Ela, com a cara, a coragem e sobretudo a esperança. Eu, com poucos dentes e cabelos, doido para levar uma palmadinha dentro do avião, pois não conseguia ficar quieto, mas tampouco chorei. Voei sem medo e sem noção, e até hoje ainda tenho lá os meus delírios lunáticos: esqueço as coisas, sonho demais; enfim, coisas dignas de um aquariano.

Três meses depois, voltava Pablinho com sua mamãezinha, mas sem seu papaizinho, posto que a relação entre os dois não foi adiante. Lá pelo menos me batizei, tirei algumas fotos e fiz algumas danações infantis. Minha mãe, a quem tanto amo e sou grato, mesmo sem ser engenheira civil, projetou e construiu com muito carinho e amor a minha vida, com a ajuda indispensável de outro engenheiro, desta vez eletricista, José Wilson Barreto de Oliveira.

Wilson esteve casado com minha mãe por longo tempo, até poucos anos atrás. Através de meu padrasto ganhei dois queridos irmãos maternos: o Bruno (17) e a Sabrina (14). Aprendi com o tempo não só a chamá-lo de pai, mas também a admirá-lo e também a amá-lo. Nem me lembro se eu já disse isso a ele, mas no fundo ele sabe, ele sente, uma vez que seu incentivo foi fundamental para minha educação, minha integridade e meu hábito de gostar de ler (talvez um pouco demais, mas com o padrão televisivo que temos, fazer o quê?).

Após essa digressão, vamos migrar do pai de fato para o pai de feto, senão a historinha fica longa e cansa o leitor. Quando eu tinha nove anos, meu pai Adhemar descobriu o telefone de nossa residência e assim, pela primeira vez, falei conscientemente com ele. Meus ouvidos registraram também outras quatro vozes, hablando un español poco comprensible para mi. Eram de Nathaly (17), Juan Pablo (19), Jaime Antonio (20) e Marcos (22). Adivinhou, os números entre parêntesis assinalam suas idades atuais. Nathaly, por exemplo, nasceu em 02 de Agosto, dia boliviano do índio, que representa a origem da maioria dos habitantes desta nação.

O que me lembro desta ligação ocorrida em 1989, quando o muro de Berlim ruiu? Que eu pedi uma bicicleta (nunca fui ideologicamente capitalista, mas como ainda era criança, tinha que pedir uma coisa legal para meu pai comprar). Que meu pai disse que viria me ver logo mais no Brasil e que eu poderia estudar depois Medicina na Bolívia. Prestação de contas: a bicicleta chegou (e segundo juramento de mamãe, não foi de um Papai Noel com sotaque nordestino); não tive a oportunidade de encontrar Adhemar; e eu virei na verdade foi Administrador por aqui (suprimi o “de Empresas” porque minha vocação é o social - nada contra, apenas defendo que as empresas pratiquem a responsabilidade cidadã que lhes cabe).

Mudei de endereço e perdemos o contato. Sempre a mesma interrogação na cabeça, a mesma exclamação no coração e as mesmas reticências na alma. Onde estava meu pai? Como era meu pai? Quando conheceria meu pai? Fala do pai do exterior porque meu outro pai (o do lado de cá) estava sempre perto de mim, me incentivando a ser um bom filho, um bom aluno, um bom amigo, e mais alguns “bom-bom” (até dar chocolate). Isso mesmo: na semana “útil”, eu ganhava revistinha em quadrinhos, mas na parte “inútil” da semana (sábado, domingo ou feriados), eu ganhava um bombom de cacau do meu padrasto. Para a gramática da criança, suponho que essa classificação valorativa (precisamente o prefixo dos adjetivos) esteja invertida.

Um Pablo tímido foi crescendo. Estudou espanhol. Enveredou pelo mundo das ONGs e projetos sociais. Minha mãe nunca me entende direito. Ela diz que sou daqueles casos de “um em mil”. Quanto mais velho nos tornarmos, a tendência é irmos ficando mais realistas e menos idealistas. Comigo, ocorre o contrário. A vontade de mudar o mundo aumenta a cada estação, a cada tropeço, a cada lição. O tempo foi me amadurecendo, muitas coisas foram mudando (amores, trabalhos, passatempos), mas o desejo familiar de conhecer minhas raízes bolivianas sempre floriu no jardim de minhas expectativas pessoais mais caras e essenciais.

Pelos idos dos meus quase 27 anos, minha mãe, tão otimista quanto eu neste assunto, veio com um papo sensacionalista. “Meu filho, por que dessa vez a gente não tenta enviar uma carta para o Programa do Gugu...” Segundo ela, tinha um quadro que juntava os elos perdidos. Mas não me empolguei especificamente com essa idéia. “Mamãe, prefiro tentar alguma coisa através da Internet...” O momento era bastante propício para essa nova prospecção: eu já tinha me formado, estava trabalhando e inclusive acabara de concluir o curso de espanhol. Além do mais, meus dedos já conheciam o famoso site de busca http://www.google.com/. Digitei “Robles Daza” (sobrenomes de meu pai) e prontamente me deparei com a página eletrônica de “Dr. Luis Germán Robles Daza”. Fiquem à vontade para conferir com seu próprio punho.

Luis é um médico urologista, justamente irmão de meu pai. A partir daí ficou tudo mais fácil. Voltar a falar com meu pai era questão de dias. Mandei e-mail para Luís e ele confirmou as semelhanças terminológicas e genéticas, colocando-me em contato com sua irmã Ingrid, que é contadora e trabalha em Nova York. Ela vibrou bastante com minhas notícias e passou gentilmente a facilitar o contato em definitivo com meu pai, que a princípio estava viajando a trabalho e não pôde ser imediatamente localizado.

No entanto, a felicidade podia começar a soltar fogos. Em fevereiro de 2007 nos falamos por telefone. Eu consegui ligar para a residência dele. Não me lembro em detalhes o que disse nem o que ouvi. Nessas horas, o mágico silêncio da emoção incontida também diz muita coisa, cuja riqueza nossa pobre linguagem racional tem dificuldade em captar e traduzir. Mas a alegria foi indescritível e recíproca. 90% da ansiedade que eu carregava se dissipou ao descobrir que meu pai está vivo, comunicável e acessível. Sua fluência no português não caiu em desuso.

Nesse mês de janeiro do ano de 2008, quando cabalisticamente completarei 28 anos no dia 28, os 10% restantes dessa boa angústia haverão de se dissolver a cada quilômetro percorrido pelo vôo 7460 da Gol rumo a Santa Cruz de la Sierra, onde, depois de 26 anos, voltarei a ver e abraçar meu pai biológico, juntamente com meus quatro irmãos paternos e a mãe deles. Os braços serão insuficientes para abarcar a um só tempo minha reencontrada família boliviana. Por outro lado, lágrimas de puro júbilo escorrerão com folga de meus olhos materiais e dos poros espirituais de minha saudade para finalmente banhar a unicidade deste abençoado momento.

Chegarei à Bolívia no dia 16 de Janeiro e regressarei ao Brasil no dia 06 de Fevereiro. Será um duplo recorde: nunca fui para tão longe e estive tanto tempo fora antes. Passarei 22 dias em outra cultura, em um país economicamente pobre, mas culturalmente muito rico. Nosso vizinho é hoje governado democraticamente por Evo Morales, um índio de origem aimará que vem buscando recuperar a dignidade e a vitalidade do sofrido povo boliviano, que herda um fardo histórico de instáveis e malfadadas experiências governistas. Conforme noticiado em 20 de Dezembro de 2007 pela Agência Brasil, “Lula defendeu a eleição de Morales e afirmou que, historicamente, a Bolívia sempre foi governada pela minoria”.

Minha ida a Bolívia, nessa perspectiva, transcende as motivações familiares e adquire, de certa forma, um caráter sócio-político, pois me sinto no dever de tentar entender a efervescente conjuntura desta nação, que certamente não se limita às matérias caricaturais despejadas pela mídia tradicional. Isso posto, levo a tarefa de vivenciar uma amostra mínima dos avanços populares e progressistas que estão sendo corajosamente empreendidos, em que pese as reações inconformadas das elites privadas e seus interesses concentradores e excludentes, como se os índios não merecessem a mais autêntica cidadania.

Quando se fala em democracia e cidadania, a palavra justiça ganha automaticamente relevo, menos no dizer dos governantes e mais no fazer dos governados, pois cada um de nós tem o compromisso social, coletivo e cotidiano de melhorar - através de suas comunidades, associações e iniciativas voluntárias - a identidade, a qualidade e a imagem de nosso Brasil. Que não é só o paraíso do Carnaval e do Futebol; também é inferno da corrupção e das desigualdades, refletindo manchas que enfeiam e envergonham nossos cartões-postais.

Ao ler a história da Bolívia numa enciclopédia e rememorar as façanhas históricas de Simon Bolívar, libertador que deu nome ao país, minha rápida pesquisa foi engrandecida por uma informação de elevado e incontestável teor revolucionário: Che Guevara morreu em 1957 na província de Valle Grande, interior de Santa Cruz de la Sierra, que dista (segundo um de meus irmãos bolivianos) a menos de quatro horas da residência de minha família (do lado de lá).

No local de sua morte, na aldeia de La Higuera, ergue-se um museu. Se Jesus Cristo quiser, eu visitarei esse “templo da militância social”. Jesus, assim como Gandhi, também foi assassinado. As turbulências políticas e os conflitos imperialistas que marcaram a trajetória de Che exigiram dele o uso de métodos menos ortodoxos, mas nem por isso incompatíveis com as necessidades conjunturais e as resistências combativas da ocasião. Destaquei a figura incansável do Che por um motivo adicional: em 09 de Outubro de 2007 completou-se 40 anos de sua morte.

“Dez, nove, oito... Atenção, passageiros com destino ao Planeta Terra... Dois, hum, zero”. A vida é uma misteriosa viagem. Ao longo deste percurso, fazemos conexões e escalas tão fantásticas, que nenhuma caixa preta, por mais avançada que seja, consegue plasmar e traduzir nossas pegadas, metamorfoses e oportunidades evolutivas. Especialmente quando semeadas pelo código da amizade: inscrito na árvore genealógica de todas as civilizações, famílias e seres humanos; capaz de unir corações, mentes e sonhos de qualquer fronteira existencial.

Os números se tornaram mais complexos. As ciências mais especializadas. As relações mais burocráticas. As revoluções mais sutis. Tudo é mais sofisticado no início do século XXI. Filhos encontram pais. Mães encontram filhas. Enquanto pessoas encontram outras pessoas, multidões desencontram outras multidões. A miséria insiste em aterrissar nossa consciência dentro de nós mesmos, provocando-nos num tom de desesperadora e incalável angústia, não importando as diferentes línguas e dialetos expressos. Se bem que nessas horas um gemido surdo e globalizado diga mais que tudo (ou de repente não diga absolutamente nada).

Estamos amando nosso próximo o suficiente? Estamos educando nossa sensibilidade social?? Estamos plantando um mundo mais bonito para as futuras gerações??? Ou mudamos já ou afundaremos amanhã. “Atenção, passa-gee-iii... ué! cadê os passageiros? será que o mapa tá errado?!? cadê a Terra?!!!?”. Esse seria o pior dos finais - o mais catastrófico, porque sem chance de recomeço. A esperança, com ou sem poesia, continua respirando seu hálito divino, ojalá en otras órbitas y galaxias también. Mas quem faz a rima somos nós: eu, você e os demais.

MENSAGEM: Somos Nossos Ideais

Somos o que são os nossos ideais*

Não julgues o homem só pelo que ele é – julga-o antes pelo que desejaria ser.

Melhor que a fortuita realidade caracteriza ao homem a espontânea liberdade do seu ideal.

Pode a realidade ser o corpo da nossa vida – mas o ideal é a alma do nosso ser.

Quantas vezes não é a realidade filha dum inconsciente dever – mas o ideal nasce sempre dum consciente querer.

Mais vale a espontânea liberdade que a dura necessidade.

Todo homem é aquilo pelo que vive e trabalha, luta e sofre – e não aquilo que o domina e oprime.

Quando Jesus encontrou, nos caminhos da sua peregrinação terrestre, aquela “pecadora possessa de sete demônios”, não lhe perguntou o que fora, mas sim, o que queria ser.

Imensamente triste era aquilo que Madalena fora – divinamente belo o que ela queria ser – e já era.

E o Nazareno lançou ao olvido o passado da pecadora, em atenção ao presente da convertida – e descerrou à santa as portas do futuro...

Não há ontem tão pecador que o hoje do amor não possa converter num amanhã de santidade.

Não há Satanás que resista à vontade humana aliada à graça de Deus.

Rendeu-se o orgulho de Saulo, capitulou a luxúria de Agostinho ante a ofensiva dum grande idealismo.

Querer é poder!

Só não pode quem não sabe querer.

Tudo é possível àquele que quer.

Oh! quão injusta é toda a justiça humana!

Só tem olhos para ver o corpo dos nossos atos – e é cega para a alma da nossa atitude...

Bem fazem os artistas em representar a justiça de olhos vendados.

Quantas vezes é o homem realmente o contrário daquilo que parece ser!

Quantas vezes são os publicanos e pecadores, as Madalenas e samaritanos, melhores que sacerdotes e levitas, escribas e doutores da lei, que em “largos filactérios e borlas volumosas” fazem consistir a sua santidade!

Quantas vezes voltam para casa “ajustados” os publicanos que batem no peito – e voltam ainda mais culpados os fariseus que exibem a Deus a estatística dos seus jejuns e os catálogos de sua piedade!...

Eu sou aquilo que é o meu sincero querer – ainda que o meu frágil poder não valha transformar logo em perfeita realidade os longínquos ideais do meu espírito.

Eu sou o meu ideal...

*FONTE: Livro “De Alma para Alma”, de Huberto Rohden, editora Martin Claret, 2004.

ARTIGO: A Dupla Omissão da Educação


Muitos educadores ingressam na competitiva universidade até dispostos a investirem em seu desenvolvimento acadêmico. Muitos professores, carregando semelhante motivação, iniciam suas carreiras até empolgados com a perspectiva de darem sua parcela de contribuição acadêmica para a formação de seus respectivos alunos.

Porém, esse mútuo compromisso educacional, esse pacto em prol da construção do conhecimento, alimentado pela sede compartilhada por ambas as categorias – corpo discente e corpo docente – de aprender e de ensinar, nem sempre consegue vigorar por muito tempo. E à medida que esse acordo vai sendo rompido, entra em cena e passa a prevalecer um estranho e também informal contrato, pautado pelas cláusulas de uma recíproca mediocridade, uma dupla omissão mais funesta do que se imagina.

Deveria ser mais do que sabido que as macropolíticas econômicas patrocinadas pelos EUA e pelos demais protagonistas ou meros coadjuvantes da desafinada orquestra neoliberal, através da pressão e intervenção de suas estratégicas agências multilaterais (como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial) contribuem cada vez mais para a globalização dessa grave crise educacional. Os sintomas mais letais dessa epidemia se traduzem na estagnação dos investimentos, no correspondente sucateamento público do ensino e na conseqüente mercantilização do saber.

Cabem a todos, como sujeitos construtores de sua história e conscientes de sua cidadania, se solidarizarem e se unirem para se contrapor a essa excludente lógica, no rastro lutuoso daqueles cuja fé e esperança não conseguiram resistir às garras bem visíveis da miséria e da injustiça – e nada impede que elas sejam um prolongamento malplanejado da mão invisível e supostamente libertária do mercado. Essa reação, mais do que criticar levianamente algo que não se pode reverter a curto prazo, deve se empenhar em multiplicar esforços sustentáveis rumo a um outro mundo, menos excludente e mais humano, que situe o social num patamar tão ou mais elevado quanto o econômico.

E dentro desse barco problemático e sem freios, que acelera disputas e conflitos com a mesma eficiência com que aborta sonhos e utopias, se encontram aquelas inegáveis categorias do início (estudantes e professores), muitos dos quais, no lugar de darem as mãos para evitar ou pelo menos minimizar as probabilidades de algum naufrágio educacional, preferem se desencontrar e virar as costas, como se cada uma delas fossem ilhas estanques, alheias e auto-suficientes, flutuando ao redor de seu próprio umbigo – uns fingindo ensinar, outros fingindo aprender.

Independente da cor da luz que se busque no fim do sombrio labirinto social em que estamos mergulhados, a proposta mais nobre e radical a ser buscada, muito mais proativa e eficaz do que seguir o rito falecido do emprego e se ajoelhar frente ao Deus do mercado (que vela sem cessar pelo lucro sem limites de seus sacerdotes e pelo consumo de cada dia de seus fiéis adeptos), passa obrigatoriamente pela porta - ou melhor, chave - da educação. Sem ela, nenhuma revolução democrática e legítima se materializa no tempo.

Mas para que seja dado o pontapé inaugural dessa longa caminhada, urge que concentremos todas as energias para efetuarmos um primeiro e desafiante passo: a superação dessa dupla omissão diante do ensino, onde o neoliberalismo faz as vezes de fúnebre pano de fundo, que não só empobrece o cenário da educação, como contribui para desconfigurá-lo até a sua catastrófica ruína. Acordemos logo e vamos à obra!
I
Artigo elaborado em 06/06/2002 e renascido em 14/01/2008 de meus alfarrábios.

MÚSICA: Teatro dos Vampiros

LEGIÃO URBANA
Composição: Renato Russo

Sempre precisei
De um pouco de atenção
Acho que não sei quem sou
Só sei do que não gosto...

E nesses dias tão estranhos
Fica a poeira
Se escondendo pelos cantos
Esse é o nosso mundo
O que é demais
Nunca é o bastante
E a primeira vez
É sempre a última chance
Ninguém vê onde chegamos
Os assassinos estão livres
Nós não estamos...

Vamos sair!
Mas não temos mais dinheiro
Os meus amigos todos
Estão, procurando emprego...

Voltamos a viver
Como há dez anos atrás
E a cada hora que passa
Envelhecemos dez semanas...

Vamos lá, tudo bem!
Eu só quero me divertir
Esquecer, dessa noite
Ter um lugar legal prá ir...

Já entregamos o alvo
E a artilharia
Comparamos nossas vidas
E esperamos que um dia
Nossas vidas
Possam se encontrar...

Quando me vi
Tendo de viver
Comigo apenas
E com o mundo
Você me veio
Como um sonho bom
E me assustei
Não sou perfeito...

Eu não esqueço
A riqueza que nós temos
Ninguém consegue perceber
E de pensar nisso tudo
Eu, homem feito
Tive medo
E não consegui dormir...

Vamos sair!
Mas estamos sem dinheiro
Os meus amigos todos
Estão, procurando emprego...

Voltamos a viver
Como a dez anos atrás
E a cada hora que passa
Envelhecemos dez semanas...

Vamos lá, tudo bem
Eu só quero me divertir
Esquecer dessa noite
Ter um lugar legal prá ir...

Já entregamos o alvo
E a artilharia
Comparamos nossas vidas
E mesmo assim
Não tenho pena de ninguém...

FONTE: http://letras.terra.com.br

domingo, 13 de janeiro de 2008

CONTO: Lágrimas Revolucionárias


Dormiu. Rapidamente acordou. Tentou novamente dormir, mas naquela noite sua vocação era mesmo a de ficar acordado. Um silêncio absolutamente completo era a sua mais fiel companhia. A madrugada avançava e ele se mantinha cada vez mais disposto, ao passo que as estrelas sequer tiveram coragem de desfilar no céu. Não seria exagero afirmar que a alma daquele jovem de 22 anos, em tão luminoso e arrebatador momento, parecia exibir um brilho raro, singularmente profético e revolucionário.

Foi precisamente na metamorfose das poucas horas que intercalavam a passagem da véspera para o amanhã, que este rapaz conseguiu reunir uma abençoada dose de energia para refletir profundamente sobre as realidades e ficções do mundo. Um mundo que, a propósito, por tantas e reiteradas vezes, dava a impressão de que não se mexia rumo a novas possibilidades, cochilando feito criança recém-nascida que pensa ainda habitar preguiçosamente o nicho confortável e imperturbável da mãe.

As meditações do jovem, definitivamente, não eram isoladas. Alguma coisa fora do comum estava acontecendo também com as moças e outros rapazes. O mundo está errado e isso, sem constrangimento, não era nenhuma novidade para a geração de todas as juventudes em atividade em todos os mundos habitados, desde que abrigassem os traços cíclicos da vida e da morte em suas misteriosas entranhas materiais e espirituais. Essa constatação de respirarmos uma atmosfera doentia, em suas múltiplas e exponenciais anomalias, ganhava uma nitidez impressionante, globalizada e incontrolável.

Antes da juventude, o mundo pode parecer certo, porque nossa ingenuidade costuma enxergar apenas as coisas boas e positivas – destituídas de vícios, falhas e demais sujeiras. Por outro lado, depois da juventude, tudo aquilo que há de absurdo, contraditório e poluído no planeta já não é capaz de provocar suficiente indignação em nossa consciência, como se as injustiças e tragédias voluntárias da existência fossem um mal necessário, irreversível e friamente banalizado.

Desdobrava-se seguramente um fenômeno que rompia os limites explicáveis de qualquer ciência, arte ou filosofia. À medida que este aparente milagre explodia seus átomos sobrenaturais, todo tipo de problema existente na Terra e que dependesse exclusivamente da ação humana, especialmente juvenil, transformava-se – literalmente por obra de algum encanto – em sua devida solução. Cada dificuldade contornável que atormentava as pessoas e suas instituições era substituída por propostas coerentes, legítimas, consistentes, viáveis e bem dizer sagradas.

Como pacificar a violência? Como amar a educação? Como unir os diferentes? Como salvar os incuráveis? Como libertar as virtudes? Enfim, uma multidão de sucessivos e simultâneos impulsos assumia um poder nunca antes visto, sentido e aplicado por aqueles jovens. Se este acontecimento fosse ilustrado numa aula de gramática, alguns padrões haveriam de destoar: o sujeito teria voz ativa, radicalmente ativa; e o verbo seria conjugado no plural, integralmente no plural. Os jovens estavam em ebulição.

Torna-se desnecessário observar que o jovem relatado no início não era o único protagonista. Em cada canto, em todos os lugares, sem exceção, renascendo dos escombros de uma alienante letargia, a juventude irradiava uma sabedoria triunfante, elevada a um patamar historicamente indescritível. A revolução não era russa, nem francesa; nem proletária, nem burguesa. Era um fenômeno sem pátria definida, sem ideologia classista e sem enredo dividido. Lampejos de harmonia cintilavam no caldeirão daquele caos.

Orquestrada pelos fios militantes da utopia, uma voz gigante e inconfundível pulsava em todas as direções, linguagens e lares (com ou sem teto, pois havia jovens que dormiam na rua). Seu discurso, sua mensagem, seu destino era claro, urgente e unânime: mudar o mundo. Que bom que as estrelas não resplandeceram naquela noite, uma vez que a presença delas teriam sido dispensáveis frente a constelação que refulgia entre aqueles jovens, entrelaçados por uma força sutil, febril e onisciente – algo sem paralelo.

Mas como foi possível chegar a tal conclusão – sem assembléias, conferências, delegados, teses e votações? Na falta de espaços democráticos que congregassem internacionalmente todas as representações de jovens e manifestassem construtivamente as suas opiniões, outros instrumentos tiveram que ser acionados naquela noite, cuja plenitude trouxe mais luz à vida concreta, diária e transformadora daqueles jovens do que o somatório de todos os raios emanados pelos dias anteriores de suas trajetórias.

As lágrimas arrancadas do espírito indignado de cada jovem, nessa mítica madrugada, foram, mais que tudo, o único ponto de encontro, de comunicação, de intercâmbio, de articulação e de transcendência entre eles. Suas mentes, corações e sobretudo atitudes projetavam nos horizontes ampliados do céu o lema fundamental que de repente irmanou toda a juventude e preencheu seus passos de grandeza: mudar o mundo. Com apenas uma ressalva: o céu não era o limite, era só o começo desta missão.

COMENTÁRIOS: O Mosaico Partido


LIVRO: Mosaico Partido (Ladislau Dowbor. Ed. Vozes, 2000).

CONTEÚDO TRANSCRITO:

[...] Pág. 137 >>>

O essencial, para nós, é mostrar que o cidadão comum não é necessariamente impotente. Pode votar com o seu bolso na hora da sua compra, com a sua poupança na hora da aplicação financeira, com o seu trabalho voluntário na hora de apoiar as organizações da sociedade civil que estão surgindo por toda a parte. É impressionante o número de pessoas que preferem optar por um salário menor em organizações do terceiro setor, e socialmente útil, do que passar a vida tentando ostentar um sucesso individual vazio.

O mal-estar que sentimos não é necessariamente de esquerda ou de direita, não é necessariamente de rico ou de pobre, de país desenvolvido ou subdesenvolvido. É um mal-estar civilizatório, ou cultural no sentido mais amplo deste termo. O ser humano abriu a caixa, libertou fantásticas tecnologias, imensos potenciais científicos. Mas as suas necessidades continuam sendo prosaicamente humanas. Adaptar as tecnologias e o potencial econômico, para que sirva às necessidades humanas, essa é a tarefa simples e imensamente complexa com que nos defrontamos. Esta tarefa não exige mais produtos, exige mais iniciativa e organização, exige mais inteligência social. E não depende, fato de imensa importância, da espera pela chegada ao poder de uma classe ou de um personagem redentor. Inclusive, é provável que não surgirá um poder político diferente enquanto não construirmos pela base uma sociedade que se rearticule e reassuma as rédeas do seu desenvolvimento.

(...)

Não é o espectro da foice e do martelo que ronda hoje as megaempresas do dinheiro, da mídia, da especulação, da manipulação, e os seus eternos suportes políticos. É uma rejeição cultural, é o imenso saco cheio de uma sociedade que quer outra coisa, e está arregaçando as mangas.

<<< Pág. 139 [...]

MEUS COMENTÁRIOS:

O livro está dividido em três partes: mosaicos do passado – que aborda as trajetórias, vivências e reflexões do autor; o mosaico do futuro – que propõe algumas tendências e desafios institucionais da sociedade; e o mosaico reconstruído –que alerta o leitor para os perigos da fragmentação e o convida para a busca de atitudes mais sistêmicas. O conteúdo que comentarei essa a terceira parte e por conseguinte o livro.

De fato, podemos mais, valemos mais e somos mais do que normalmente nos fazem crer. Por maiores que sejam as pressões inescapáveis e influências incontroláveis que permeiam a existência, sempre haverá uma margem de manobra para exercermos a identidade, individualidade e livre-arbítrio que nos é próprio. Algumas vezes parecemos estar sufocados em meio a exigências alheias, mas temos que evitar essa velada escravidão.

Participar de associações civis, projetos comunitários ou movimentos sociais é um excelente exercício de cidadania política, responsabilização pessoal e intervenção no mundo. É muito fácil assistirmos de camarote, como platéias omissas, o conjunto de processos, iniciativas e decisões que outros empreendem em nosso lugar, contrariando muitas vezes as expectativas da maioria ou promessas publicamente anunciadas.

Não se questiona os benefícios da tecnologia e a importância da economia em si, enquanto áreas fundamentais para a produção avançada e a distribuição coletiva de bem-estar. O problema reside essencialmente, como bem destaca o autor, na apropriação, manipulação e distorção desses aspectos em prol dos interesses privatistas de uma minoria, que se fecha na redoma de suas ambições e esvazia suas capacidades humanas de convivência.

sábado, 12 de janeiro de 2008

PENSAMENTOS: Dez Frases Próprias (II)

11. “O que são as lágrimas? É todo sentimento refrescante que foi ignorado enquanto estávamos ocupados com sorrisos insossos e insípidos”.

12. “A televisão e a religião detém algumas semelhanças: muitas de suas programações têm a insuspeita vocação de nos iludir; ora desligando nossa mente dos problemas, ora alienando nosso espírito das soluções”.

13. “A fé na verdade transcende qualquer ideologia e a vontade política de realizá-la a serviço de um mundo melhor ilumina e dissipa as piores dificuldades”.

14. “Tudo é menos provável do que parece ser. Essa é a face pessimista e misteriosa do otimismo, razão pela qual ele merece ser chamado de esperança”.

15. “Conciliar as expectativas subjetivas do coração com as os compromissos objetivos da razão é um ótimo desafio para medirmos o desempenho do bom-senso”.

16. “Somos, não raro, o contrário daquilo que apenas planejamos”.

17. “Enquanto seres inacabados, o sonho é aquilo que temos de mais nobre, belo e real.”

18. “Sonhar é projetar-se para o infinito das possibilidades.”

19. “A beleza da vida está na capacidade de nos encantarmos com os seus detalhes”.

20. “Sem a amizade, a vida seria uma poesia sem rima: nem o amor se sustentaria e tampouco a justiça se completaria”.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

ESCRITO: Anúncio Poeta do Social


Texto enviado em 24/08/2007 a amigos potencialmente interessados em poesia.


Queridas/os colegas e companheiras/os das mais variadas e fraternas estações, quer da afeição pessoal, da convivência humana, da militância social ou outras formas locais e oportunidades planetárias de estarmos no mundo, de tecermos seus horizontes e de nos conectarmos subjetivamente com tudo que tem vida, sonhos e mistérios... apresento-lhes minha primeira coletânea poética, fruto do meu esforço inédito e resoluto de assumir coletivamente minha faceta artística, ainda que partindo de meu universo conhecido de pessoas.

O que ora se desabrocha perante seus olhos são os poemas semanais que venho publicando discretamente no Orkut, uma vez que os deixo simplesmente à mostra em minha seção de recados, à livre degustação das pessoas mais ou menos anônimas que espontaneamente me visitam para acompanhar, cumprimentar e renovar meus versos; uma vez que cada leitura, releitura e eventual comentário sobre os mesmos fazem minhas produções poéticas mudarem de cor, de sabor, de significado, de intensidade e obviamente de inspiração.

Neste mundo fantástico e nem sempre admirável em que vivemos, quer transformando quer prolongando as ideologias, tendências e paradigmas do passado, a arte jamais cansou e tampouco se cansará de nos convidar a sermos nós mesmos, nem que o façamos durante fugidios instantes do dia e episódicos trechos de nossa existência (ou existências, considerando que somos as gotas únicas de um mesmo mar, as centelhas distintas de um mesmo fogo... enfim, ondas de amor e chamas de justiça que se convertem em asas e nos impulsionam para o infinito, a utopia da perfeição).

E é na essência mais indizível e menos explicável desta dimensão - para onde convergem tanto os fluxos serenos da razão quanto os impulsos arrebatados da emoção - que a arte encontra sua maior expressão e se nutre de seu melhor combustível; e se existe um gênero artístico, uma linguagem cultural e uma manifestação criativa que demande e mereça uma atenção especial, acredito que esse relativo privilégio destina-se à poesia. Utilizarei a seguir duas singelas metáforas para defender a prioridade desta modalidade artística frente ao “mundo do belo” que respinga em nossa “face terrestre”.

Se a poesia literalmente se humanizasse, aposto que ela seria uma criança, das mais frágeis e desamparadas; ou se ela se animalizasse, seria uma formiga, das mais invisíveis e despercebidas. Por outro lado, a poesia herdaria positivamente a pureza e a imaginação dessas crianças, bem como a discrição e a coletividade dessas formigas. Como as crianças, é impossível cruzarmos com as poesias sem sermos tocados de alguma forma por elas, mesmo quando tantos adultos a maltratam e não lhe dão o devido carinho. Como as formigas, é indiscutível a influência silenciosa das poesias, mesmo quando tantos adultos a ignoram e não lhe dispensam o justo valor.

E ao receberem, guardarem, excluírem, criticarem, divulgarem - dentre outros usos e não-usos - alguma poesia minha, lembrem-se sempre que a intenção mais sagrada e radical que move os versos e entre-versos, estrofes e entre-estrofes deste esforço artístico, é (ou pretende ser) social. Se não fui tão feliz na comparação anterior, ninguém com um mínimo de bom-senso pode negar que o social, este sim, é a imagem negativa da criança abandonada e da formiga pisoteada pelos tentáculos semi-hegemônicos (o prefixo ´semi` seria eufemismo?) do econômico.

É precisamente o social, no sentido mais humano e coletivo do termo, o refém mais oprimido desta lógica potencialmente perigosa e meio que suicida: capaz de nos fazer olhar mais para o relógio do que para a natureza, de nos fazer colocar mais vezes as mãos dentro dos bolsos do que no rosto das crianças, de nos fazer tratar os nossos “competidores” (das famílias, escolas, igrejas, universidades, organizações etc) que ameaçam diminuir os nossos “lucros” como se fossem reles formigas. O mundo está errado e a poesia, sobretudo uma poesia de caráter social, pode ajudar a enxergar e consertar isso.

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

MENSAGEM: Educação e Brasil Melhor

EDUCAÇÃO PARA UM BRASIL MELHOR*

Um país se constrói da mesma forma como se constrói uma casa. E como se constrói uma casa? Por onde se começa? Antes dos tijolos, do cimento, dos ferros e das telhas, é preciso que haja um desejo. Aquele momento quando alguém diz: "Que bom seria se eu tivesse uma casa!" Se o desejo bate forte, ele se transforma em Sonho. O Sonho é quando o desejo fica visível: a casa será amarela, terá uma varanda com rede, um jardinzinho na frente, uma cozinha gostosa, lareira...

Essa casa é um Sonho. Mas não se pode morar numa casa sonhada. Os sonhos, sozinhos, são fracos. Aí, para transformar a casa sonhada em casa de verdade, o Sonho chama em seu socorro a Inteligência. A Inteligência é o poder que torna possível a realização dos Sonhos. Explico. Eu era pequeno. Na casa do vizinho havia uma árvore carregada de frutinhas vermelhas, pitangas. Fiquei sonhando comê-las. Mas elas estavam do outro lado do muro, longe das minhas mãos. Aí o meu desejo chamou a Inteligência e lhe disse: "Diga-me o que fazer para comer as pitangas!" A Inteligência obedeceu e me disse: "É fácil. Basta que você construa uma maquineta de roubar pitangas. Uma maquineta de roubar pitangas se faz assim. Primeiro, é preciso encompridar o seu braço. Para isso use um cabo de vassoura. Mas um braço comprido não basta. É preciso colocar uma mãozinha na ponta. Amarre uma lata de massa de tomates vazia na ponta do cabo de vassoura. E faça um dente na lata, para prender a pitanga..." Foi o que eu fiz. E roubei e comi todas as pitangas que queria. Primeiro foi o Sonho. Depois a Inteligência... Os Sonhos fazem pensar. A mesma coisa acontece com a casa. A gente sonha e o Sonho põe a Inteligência a funcionar: e ela pensa a planta da casa, o custo, o financiamento, os materiais necessários, os pedreiros, a administração...

Um país é uma casa grande onde construímos nossas pequenas casas. Um país é uma casa de casas... Constrói-se um país da mesma forma como se constrói uma casa. Com uma diferença. Para eu construir a minha casa bastam o meu Sonho e a minha Inteligência. Mas para se construir essa grande casa chamada país é preciso que muitos sonhem o mesmo Sonho. Quando muitas pessoas sonham juntas o mesmo Sonho dessa grande casa chamada país temos um povo. É o povo que constrói um país.

Essa é uma das missões da educação: formar um povo. Ou seja, ajudar as pessoas a sonhar sonhos comuns para que, juntas, possam construir. As escolas devem ser o espaço onde alunos e professores sonham e compartilham seus sonhos porque sem sonhos comuns não há povo, e não havendo um povo não se pode construir um país. Se eu sonho com um país de águas cristalinas e natureza preservada, meu sonho pessoal será inútil se não houver muitos que sonhem esse mesmo Sonho. Caso contrário as florestas serão destruídas e as águas serão poluídas.

Mas, como já disse, os Sonhos não bastam. Eles precisam da ajuda da Inteligência. Acontece que a Inteligência tem idéias próprias: só funciona quando um Sonho (ainda que bem pequeno) lhe dá ordens. É inútil obrigar a Inteligência a aprender mil coisas que não estão ligadas aos Sonhos. A Inteligência esquece logo (... porque é inteligente...). O que sobrou em você de tudo o que você teve de aprender na escola? Você esqueceu porque aqueles saberes não eram resposta aos seus sonhos.

É assim que construímos a nossa vida: com Sonhos e Inteligência.

É assim que se constrói um país melhor: com Sonhos e Inteligência.

Esse é o programa básico da educação.

*POR RUBEM ALVES

ESCRITO: Do Ócio à Utopia


A televisão não consegue prender minha atenção - leia-se aprisionar minha consciência. O computador já esgotou sua cota regular de influência - essa tecnologia já me consumiu trinta horas durante a semana. O mundo lá fora não parece tão convidativo – minha preguiça física temporariamente se faz hegemônica. Meus filmes perderam seu poder de sedução – o estoque disponível de DVDs já foi demasiadamente digerido.

Outras pessoas estão fora do meu alcance tangível e não me sinto disposto a remediar tal distância através do telefone. Beber? Fumar? Esses verbos não se aplicam ao meu caso, pois nunca bebo sozinho em casa e jamais fumaria em lugar nenhum. Também não vou comer nem dormir. Quem come para passar o tempo só pode ser um compulsivo obeso e quem dorme por qualquer motivo deveria se enterrar logo no caixão para não mais acordar. Enfim, o que fazer nesta tarde de domingo que não seja tão habitual?

Escapando ao chamado lugar-comum, sem me deixar abater pela brisa cinzenta da hesitação nem ser capturado pelas garras traiçoeiras da inércia, rapidamente me vejo debruçado sobre a superfície branca, virgem e difusa de alguns papéis, convocados para uma inesperada e desafiadora missão: saciar a angústia precoce e volúvel de um jovem que decidiu intitular-se, pelo menos junto aos seus botões, como futuro escritor.

Escritor de quê? De qualquer coisa que possa agregar sentido a mim, às pessoas e ao mundo. Em termos comerciais: de algo que agrade às editoras. Do ponto de vista literário: de algo que desperte prazer estético. No âmbito científico: de algo que promova acirrados debates acadêmicos. Com base numa visão megalomaníaca: de algo que ocupe as prateleiras dos livros mais vendidos. Ainda não tenho o direito de me atrever a planejar aquilo que escreverei. Por enquanto, só me resta especular o imponderável.

A tarefa não é fácil, pois embora eu gaste muito tempo lendo e de vez em quando alimente o desiderato de deixar alguma herança impressa que possa ser útil a alguém, a realidade da prática é bem diferente. Uma coisa é escrever, descompromissadamente, dez possíveis títulos de obras que um dia eu poderia dar forma, essência e vida. Outra coisa, bastante árdua e conseqüente, significa redigir efetivamente os conteúdos e capítulos destes pretensos materiais, sem perder de vista suas reais perspectivas de contribuição.

Mas como não é proibido projetar o futuro, ainda que o passado dele não revele nenhuma pista e o presente não passe de um esboço miniaturizado e imprevisível dos desígnios vindouros, me permito derramar neste texto, com humilde ousadia, a intenção de algum dia fazer nascer, a partir de meu próprio punho e obstinação, um ou mais livros. Que o blog que hospeda este pequeno texto seja o arauto desta utopia. Ainda que seu eventual horizonte brilhe além de minha visão, o importante é acreditar que ele pode existir.