JULGAMENTO DE UM POETA*
*Trecho do livro Liberdade, liberdade, de Millôr fernandes & Flávio rangel, editado em 2006 pela L&PM (coleção Pocket Plus). A obra, que inaugurou no país um gênero baseado em fragmentos históricos, é o roteiro da famosa peça de teatro de mesmo nome, montada em 1965 e censurada depois pela ditadura. Os atores citados referem-se ao Paulo Autran, Vianna Filho e Tereza Rachel.
VOZ GRAVADA – No ano passado foi julgado na União Soviética o poeta Joseph Brodsky. Aqui estão trechos taquigráficos de seu julgamento.
PAULO – Qual é o seu nome?
VIANA – Joseph Brodsky.
PAULO – Qual é a sua ocupação?
VIANNA – Escrevo poemas. Traduzo. Suponho que...
PAULO – Não interessa o que o senhor supõe. Fique em pé respeitosamente. Não se encoste na parede. Olhe para a corte. Responda com respeito. O senhor tem um trabalho regular?
VIANNA – Pensei que fosse um trabalho regular.
PAULO – Dê uma resposta precisa.
VIANNA – Eu escrevia poemas: julguei que seriam publicados. Supus...
PAULO – Não interessa o que o senhor supõe. Responda porque não trabalhava.
VIANNA – Eu trabalhava; eu escrevia poemas.
PAULO – Isso não interessa. Queremos saber a que instituição o senhor estava ligado.
VIANNA – Tinha contratos com uma editora.
PAULO – Há quanto tempo o senhor trabalha?
VIANNA – Tenho trabalhado arduamente.
PAULO – Ora, arduamente! Responda certo.
VIANNA – Cinco anos.
PAULO – Onde o senhor trabalhou?
VIANNA – Numa fábrica, em expedições geológicas...
PAULO – Quanto tempo trabalhou na fábrica?
VIANNA – Um ano.
PAULO – E qual é seu trabalho real?
VIANNA – Eu sou um poeta. E tradutor de poesia.
PAULO – Quem reconheceu o senhor como poeta e lhe deu um lugar entre eles?
VIANNA – Ninguém. E quem me deu um lugar entre a raça humana?
PAULO – O senhor aprendeu isso?
VIANNA – O quê?
PAULO – A ser poeta? Não tentou ir para uma Universidade onde as pessoas são ensinadas, onde aprendem?
VIANNA – Não pensei que isso pudesse ser ensinado.
PAULO – Então como...?
VIANNA – Eu pensei que... Por vontade de Deus...
PAULO – É possível ao senhor viver do dinheiro que ganha?
VIANNA – É possível. Desde que me prenderam sou obrigado a assinar um documento, todos os dias, declarando que gastam comigo quarenta copeques. Eu ganhava mais do que isso por dia.
PAULO – O senhor não precisa de ternos, sapatos?
VIANNA – Eu tenho um terno. É velho, mas é um bom terno. Não preciso de outro.
PAULO – Os especialistas aprovaram seus poemas?
VIANNA – Sim, fui publicado na Antologia dos Poetas Inéditos e fiz leituras de traduções do polonês.
PAULO – Seria melhor, Brodsky, que explicasse à corte por que não trabalhava no intervalo de seus trabalhos.
VIANNA – Eu trabalhava. Eu escrevia poemas.
PAULO – Mas existem pessoas que trabalham numa fábrica e escrevem poemas ao mesmo tempo. O que o impediu de fazer isso?
VIANNA – As pessoas não são iguais. Mesmo a cor dos olhos, dos cabelos... a expressão do rosto.
PAULO – Isso não é novidade. Qualquer criança sabe disso. Seria melhor que explicasse qual a sua contribuição para o movimento comunista.
VIANNA – A construção do comunismo não significa somente o trabalho do carpinteiro ou o cultivo do solo. Significa também o trabalho intelectual, o...
PAULO – Não interessam as palavras pomposas. Responda como pretende organizar suas atividades de trabalho no futuro.
VIANNA – Eu queria escrever poesia e traduzir. Mas se isso contraria a regra geral, arranjarei um trabalho... e escreverei poesia.
PAULO – O senhor tem algum pedido a fazer à corte?
VIANNA – Eu gostaria de saber por que fui preso.
PAULO – Isso não é um pedido; é uma pergunta.
VIANNA – Então não tenho nenhum pedido.
TEREZA – Brodsky foi condenado a cinco anos de trabalhos forçados, numa fazenda estatal de Arcangel, na função de carregador de estrume. O poeta tinha vinte e quatro anos.
MEUS COMENTÁRIOS
Triste mundo esse para condenar uma das expressões mais subjetivas, autênticas e comoventes da vida: a arte poética. Em uma sociedade dominada pela ditadura da razão e organizada com base nas relações instrumentais de interesse, o valor substantivo da poesia incomoda e não encontra espaço para desabrochar.
Por uma ironia infeliz, o impulso libertador, criativo e transcendental de Brodsky, sublimado e potencializado através da poesia, foi punido impiedosamente e submetido à escravidão, ao cerceamento das energias emocionalmente autônomas e produtivas do poeta. Um julgamento sem rima, sem alma e sem compaixão.
Por que a arte é tão vilipendiada, maltratada e incompreendida? A poesia permeia todo o mistério da vida, a beleza da natureza e a harmonia do universo. Em todo território não invadido pelo arbítrio monopolizante da razão, eis que a poesia conseque respirar, dançar e cantar, celebrando múltiplos sentidos e ativando sensibilidades de todas as cores.
Ainda que a esmagadora maioria da humanidade quase insensível não saiba valorizar e honrar as virtudes e dimensões da poesia, é preciso se render ao fato de que tal arte jamais será extinta e banida do planeta, pois tudo aquilo que não tem tradução objetiva e duração definida tem necessariamente um quê de poesia, algo de magia, um verso inapreensível de eternidade.
segunda-feira, 7 de julho de 2008
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3 comentários:
Belíssimo comentário esse seu, Pablo. Acho que traduz o que muita gente sente! O fragmanto do livro é ótimo, estou curioso em relação ao mesmo. O que eu queria é ver o mestre Paulo Autran interpretendo esse texto no teatro...
'té mais! ;)
Nossa...que lindo isso!
Os poetas tem o que falta no mundo não é mesmo? SENSIBILIDADE!
Adorei seu comentário e fiquei instigada em ler todo o resto do livro!
Obrigada meu amigo por isto!
Beijos e ótimo dia!
Olá meu amigo Pablo!
Excelente post e indicação. Seus comentários adicionais são tocantes!
Os tempos mudaram, mas o que me corta a alma e que ainda hoje por diversos meios a poesia e os poetas são escravizados, o capitalismo selvagem com seus tentáculos vão estragulando a poesia nossa de cada dia pela lei do mais forte e pela urgência da sobrevivência. Sim em tudo há poesia, até mesmo na dor, entretanto nosso tempo sequestrado, nossa qualidade de vida usurpada, nos fazem reféns de uma escravidão camuflada tão cruel quanto a de Bronski.
Um abraço poético
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