segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

CRÔNICA: Um Reencontro Boliviano














































Este mês é especial para mim e sem dúvida será um dos mais importantes de toda a minha presente vida familiar. Explicarei porque, resgatando o devido contexto e incorporando algumas reflexões bem-vindas ao propósito extensivo desta crônica.

Em 1975, minha mãe conheceu Adhemar Robles Daza, um boliviano que veio estudar Engenharia Civil aqui no Ceará. Em 1980, a mãe de Adhemar, juntamente com as duas irmãs dele, visitou o Brasil para prestigiar a formatura do filho. E também para convencê-lo a voltar para a Bolívia e lá construir sua vida profissional.

Adhemar acabou voltando à seu território natal boliviano, o Estado (Departamento) de Santa Cruz de La Sierra. Minha mãe, Maria Madalena Pereira de Albuquerque, aqui ficou. Entre os dois, a saudade, a distância, mas também um elo biologicamente comum: um bebê de seis meses e um raio de três centímetros de bochecha em cada lado. Pablo de Albuquerque Robles era o nome da criança, que hoje parece ter as bochechas menos rechonchudas.

Quando eu tinha e um ano e quatro meses, fui com minha mãe para a Bolívia. Ela, com a cara, a coragem e sobretudo a esperança. Eu, com poucos dentes e cabelos, doido para levar uma palmadinha dentro do avião, pois não conseguia ficar quieto, mas tampouco chorei. Voei sem medo e sem noção, e até hoje ainda tenho lá os meus delírios lunáticos: esqueço as coisas, sonho demais; enfim, coisas dignas de um aquariano.

Três meses depois, voltava Pablinho com sua mamãezinha, mas sem seu papaizinho, posto que a relação entre os dois não foi adiante. Lá pelo menos me batizei, tirei algumas fotos e fiz algumas danações infantis. Minha mãe, a quem tanto amo e sou grato, mesmo sem ser engenheira civil, projetou e construiu com muito carinho e amor a minha vida, com a ajuda indispensável de outro engenheiro, desta vez eletricista, José Wilson Barreto de Oliveira.

Wilson esteve casado com minha mãe por longo tempo, até poucos anos atrás. Através de meu padrasto ganhei dois queridos irmãos maternos: o Bruno (17) e a Sabrina (14). Aprendi com o tempo não só a chamá-lo de pai, mas também a admirá-lo e também a amá-lo. Nem me lembro se eu já disse isso a ele, mas no fundo ele sabe, ele sente, uma vez que seu incentivo foi fundamental para minha educação, minha integridade e meu hábito de gostar de ler (talvez um pouco demais, mas com o padrão televisivo que temos, fazer o quê?).

Após essa digressão, vamos migrar do pai de fato para o pai de feto, senão a historinha fica longa e cansa o leitor. Quando eu tinha nove anos, meu pai Adhemar descobriu o telefone de nossa residência e assim, pela primeira vez, falei conscientemente com ele. Meus ouvidos registraram também outras quatro vozes, hablando un español poco comprensible para mi. Eram de Nathaly (17), Juan Pablo (19), Jaime Antonio (20) e Marcos (22). Adivinhou, os números entre parêntesis assinalam suas idades atuais. Nathaly, por exemplo, nasceu em 02 de Agosto, dia boliviano do índio, que representa a origem da maioria dos habitantes desta nação.

O que me lembro desta ligação ocorrida em 1989, quando o muro de Berlim ruiu? Que eu pedi uma bicicleta (nunca fui ideologicamente capitalista, mas como ainda era criança, tinha que pedir uma coisa legal para meu pai comprar). Que meu pai disse que viria me ver logo mais no Brasil e que eu poderia estudar depois Medicina na Bolívia. Prestação de contas: a bicicleta chegou (e segundo juramento de mamãe, não foi de um Papai Noel com sotaque nordestino); não tive a oportunidade de encontrar Adhemar; e eu virei na verdade foi Administrador por aqui (suprimi o “de Empresas” porque minha vocação é o social - nada contra, apenas defendo que as empresas pratiquem a responsabilidade cidadã que lhes cabe).

Mudei de endereço e perdemos o contato. Sempre a mesma interrogação na cabeça, a mesma exclamação no coração e as mesmas reticências na alma. Onde estava meu pai? Como era meu pai? Quando conheceria meu pai? Fala do pai do exterior porque meu outro pai (o do lado de cá) estava sempre perto de mim, me incentivando a ser um bom filho, um bom aluno, um bom amigo, e mais alguns “bom-bom” (até dar chocolate). Isso mesmo: na semana “útil”, eu ganhava revistinha em quadrinhos, mas na parte “inútil” da semana (sábado, domingo ou feriados), eu ganhava um bombom de cacau do meu padrasto. Para a gramática da criança, suponho que essa classificação valorativa (precisamente o prefixo dos adjetivos) esteja invertida.

Um Pablo tímido foi crescendo. Estudou espanhol. Enveredou pelo mundo das ONGs e projetos sociais. Minha mãe nunca me entende direito. Ela diz que sou daqueles casos de “um em mil”. Quanto mais velho nos tornarmos, a tendência é irmos ficando mais realistas e menos idealistas. Comigo, ocorre o contrário. A vontade de mudar o mundo aumenta a cada estação, a cada tropeço, a cada lição. O tempo foi me amadurecendo, muitas coisas foram mudando (amores, trabalhos, passatempos), mas o desejo familiar de conhecer minhas raízes bolivianas sempre floriu no jardim de minhas expectativas pessoais mais caras e essenciais.

Pelos idos dos meus quase 27 anos, minha mãe, tão otimista quanto eu neste assunto, veio com um papo sensacionalista. “Meu filho, por que dessa vez a gente não tenta enviar uma carta para o Programa do Gugu...” Segundo ela, tinha um quadro que juntava os elos perdidos. Mas não me empolguei especificamente com essa idéia. “Mamãe, prefiro tentar alguma coisa através da Internet...” O momento era bastante propício para essa nova prospecção: eu já tinha me formado, estava trabalhando e inclusive acabara de concluir o curso de espanhol. Além do mais, meus dedos já conheciam o famoso site de busca http://www.google.com/. Digitei “Robles Daza” (sobrenomes de meu pai) e prontamente me deparei com a página eletrônica de “Dr. Luis Germán Robles Daza”. Fiquem à vontade para conferir com seu próprio punho.

Luis é um médico urologista, justamente irmão de meu pai. A partir daí ficou tudo mais fácil. Voltar a falar com meu pai era questão de dias. Mandei e-mail para Luís e ele confirmou as semelhanças terminológicas e genéticas, colocando-me em contato com sua irmã Ingrid, que é contadora e trabalha em Nova York. Ela vibrou bastante com minhas notícias e passou gentilmente a facilitar o contato em definitivo com meu pai, que a princípio estava viajando a trabalho e não pôde ser imediatamente localizado.

No entanto, a felicidade podia começar a soltar fogos. Em fevereiro de 2007 nos falamos por telefone. Eu consegui ligar para a residência dele. Não me lembro em detalhes o que disse nem o que ouvi. Nessas horas, o mágico silêncio da emoção incontida também diz muita coisa, cuja riqueza nossa pobre linguagem racional tem dificuldade em captar e traduzir. Mas a alegria foi indescritível e recíproca. 90% da ansiedade que eu carregava se dissipou ao descobrir que meu pai está vivo, comunicável e acessível. Sua fluência no português não caiu em desuso.

Nesse mês de janeiro do ano de 2008, quando cabalisticamente completarei 28 anos no dia 28, os 10% restantes dessa boa angústia haverão de se dissolver a cada quilômetro percorrido pelo vôo 7460 da Gol rumo a Santa Cruz de la Sierra, onde, depois de 26 anos, voltarei a ver e abraçar meu pai biológico, juntamente com meus quatro irmãos paternos e a mãe deles. Os braços serão insuficientes para abarcar a um só tempo minha reencontrada família boliviana. Por outro lado, lágrimas de puro júbilo escorrerão com folga de meus olhos materiais e dos poros espirituais de minha saudade para finalmente banhar a unicidade deste abençoado momento.

Chegarei à Bolívia no dia 16 de Janeiro e regressarei ao Brasil no dia 06 de Fevereiro. Será um duplo recorde: nunca fui para tão longe e estive tanto tempo fora antes. Passarei 22 dias em outra cultura, em um país economicamente pobre, mas culturalmente muito rico. Nosso vizinho é hoje governado democraticamente por Evo Morales, um índio de origem aimará que vem buscando recuperar a dignidade e a vitalidade do sofrido povo boliviano, que herda um fardo histórico de instáveis e malfadadas experiências governistas. Conforme noticiado em 20 de Dezembro de 2007 pela Agência Brasil, “Lula defendeu a eleição de Morales e afirmou que, historicamente, a Bolívia sempre foi governada pela minoria”.

Minha ida a Bolívia, nessa perspectiva, transcende as motivações familiares e adquire, de certa forma, um caráter sócio-político, pois me sinto no dever de tentar entender a efervescente conjuntura desta nação, que certamente não se limita às matérias caricaturais despejadas pela mídia tradicional. Isso posto, levo a tarefa de vivenciar uma amostra mínima dos avanços populares e progressistas que estão sendo corajosamente empreendidos, em que pese as reações inconformadas das elites privadas e seus interesses concentradores e excludentes, como se os índios não merecessem a mais autêntica cidadania.

Quando se fala em democracia e cidadania, a palavra justiça ganha automaticamente relevo, menos no dizer dos governantes e mais no fazer dos governados, pois cada um de nós tem o compromisso social, coletivo e cotidiano de melhorar - através de suas comunidades, associações e iniciativas voluntárias - a identidade, a qualidade e a imagem de nosso Brasil. Que não é só o paraíso do Carnaval e do Futebol; também é inferno da corrupção e das desigualdades, refletindo manchas que enfeiam e envergonham nossos cartões-postais.

Ao ler a história da Bolívia numa enciclopédia e rememorar as façanhas históricas de Simon Bolívar, libertador que deu nome ao país, minha rápida pesquisa foi engrandecida por uma informação de elevado e incontestável teor revolucionário: Che Guevara morreu em 1957 na província de Valle Grande, interior de Santa Cruz de la Sierra, que dista (segundo um de meus irmãos bolivianos) a menos de quatro horas da residência de minha família (do lado de lá).

No local de sua morte, na aldeia de La Higuera, ergue-se um museu. Se Jesus Cristo quiser, eu visitarei esse “templo da militância social”. Jesus, assim como Gandhi, também foi assassinado. As turbulências políticas e os conflitos imperialistas que marcaram a trajetória de Che exigiram dele o uso de métodos menos ortodoxos, mas nem por isso incompatíveis com as necessidades conjunturais e as resistências combativas da ocasião. Destaquei a figura incansável do Che por um motivo adicional: em 09 de Outubro de 2007 completou-se 40 anos de sua morte.

“Dez, nove, oito... Atenção, passageiros com destino ao Planeta Terra... Dois, hum, zero”. A vida é uma misteriosa viagem. Ao longo deste percurso, fazemos conexões e escalas tão fantásticas, que nenhuma caixa preta, por mais avançada que seja, consegue plasmar e traduzir nossas pegadas, metamorfoses e oportunidades evolutivas. Especialmente quando semeadas pelo código da amizade: inscrito na árvore genealógica de todas as civilizações, famílias e seres humanos; capaz de unir corações, mentes e sonhos de qualquer fronteira existencial.

Os números se tornaram mais complexos. As ciências mais especializadas. As relações mais burocráticas. As revoluções mais sutis. Tudo é mais sofisticado no início do século XXI. Filhos encontram pais. Mães encontram filhas. Enquanto pessoas encontram outras pessoas, multidões desencontram outras multidões. A miséria insiste em aterrissar nossa consciência dentro de nós mesmos, provocando-nos num tom de desesperadora e incalável angústia, não importando as diferentes línguas e dialetos expressos. Se bem que nessas horas um gemido surdo e globalizado diga mais que tudo (ou de repente não diga absolutamente nada).

Estamos amando nosso próximo o suficiente? Estamos educando nossa sensibilidade social?? Estamos plantando um mundo mais bonito para as futuras gerações??? Ou mudamos já ou afundaremos amanhã. “Atenção, passa-gee-iii... ué! cadê os passageiros? será que o mapa tá errado?!? cadê a Terra?!!!?”. Esse seria o pior dos finais - o mais catastrófico, porque sem chance de recomeço. A esperança, com ou sem poesia, continua respirando seu hálito divino, ojalá en otras órbitas y galaxias también. Mas quem faz a rima somos nós: eu, você e os demais.

1 comentários:

Jacqueline disse...

Pablo!!
muito bonito esse se texto, talvez mais bonito que os demais por ter uma carga tão grande e real de emoção...
Espero que possamos nos encontrar em breve para vc contar suas aventuras bolivianas! :)
Abraço!!!!!!!!!!