quarta-feira, 14 de janeiro de 2009
A Sensibilidade Quer Respirar
Sinto-me puxado por um abismo diferente, uma espécie de precipício redentor, um labirinto libertador. Meu corpo balança, mas ainda não consegue cair. Preciso me atirar nesse penhasco para me reencontrar. Quero visitar sutis profundezas para descobrir novas luzes. Acontece que o abismo sou eu. O precipício somos nós.
Consola-me saber que raras pessoas conseguiram tal façanha. O íngreme caminho que leva a Deus parece cada vez mais burocrático e difuso. A fé cega na ciência esbarrou na loucura da razão. A arte foi retalhada e vilipendiada pelo mercado. A poesia foi trancada nos calabouços da racionalidade. A sensibilidade quer respirar.
Os espelhos da verdade continuam embaçados. Habitamos um corpo que mal conhecemos. Processamos uma mente que mal controlamos. Abrigamos desejos que mal contemos. Possuímos hipoteticamente uma alma que mal sentimos. Ainda somos turistas de nosso próprio interior. Por que fugimos tanto de nossa essência?
A aparência administra nossas ilusões e anestesia nossa identidade. Viva a modernidade (ou pós) numa era em que voltamos à pré-sensibilidade. Livrai-nos da mídia alienante. A informação globalizada nos alcança, nos persegue e nos invade de todos os lados, mas muito pouco daquilo que chega nos convém, nos dignifica e nos fortalece como seres humanos vocacionados para a plenitude existencial e a harmonização universal.
Poluímos nosso ser desde o amanhecer até o anoitecer com influências que não estão à altura da sabedoria que precisamos e aspiramos para sermos verdadeiramente felizes, autoconscientes e protagonistas de nossos sonhos. Angústias, preocupações e medos se infiltram nas brechas das fraquezas humanas. Egoísmos, competições e vaidades foram contratados, sem nossa permissão explícita, para nos vigiar e superficializar.
As famílias ainda resistem, não obstante os vendavais, terremotos, avalanches e furacões que ameaçam a simplicidade, sintonia e fraternidade das residências. “Silêncio, começou o jornal”. “Silêncio, começou a novela”. “Silêncio, começou o filme”. Para que perder tempo sorrindo e chorando, amando e ousando, traindo e perdoando? A mídia faz isso pela gente e ainda economiza nossas emoções para os Feriados, o Natal, o Carnaval...
A televisão seqüestrou o cotidiano dos lares. Através de suas telas, as famílias passaram a observar capítulos das glórias e tragédias de outras famílias. O resto do mundo, aparentemente, saiu do anonimato. Enquanto isso, os membros das famílias estão cada vez mais distantes entre si. Muitos sabem mais da vida dos artistas e celebridades do que da vida de seus parentes e vizinhos. Televisão em excesso desumaniza e estraga as famílias.
Nossa cidade também é palco de outro desfile de insensibilidades. Nossos sentidos não podem ser urbanizados e industrializados a ponto de calarem nossa capacidade de ouvir, enxergar e dialogar com a natureza. As atribulações, pressões, rotinas e obrigações contemporâneas não têm o direito de romper nosso cordão umbilical com o meio ambiente. De que adianta denunciarmos o aquecimento global sem superarmos o esfriamento local? Não deixe nunca o mundo congelar sua sensibilidade, incluindo suas utopias e poesias.
A natureza, com efeito, é uma coleção de diálogos majestosos e encantadores. Despeço-me tentando esboçar e ilustrar alguns deles. As flores sorriem coloridamente para o Sol, que retribui com brilhos ainda mais intensos e envolventes. Estrelas dançam para a Lua. Chuvas acariciam a face da Terra. Os pássaros anunciam e ornamentam o pôr-do-sol. As árvores renovam seus artigos de moda a cada estação. As ondas dos mares se revezam para lamber e refrescar as dunas de areia. As folhas ensaiam coreografias ao sabor dos ventos.
Viva a sensibilidade. Ela está por aqui e por ali, tentando respirar timidamente em algum canto para que nada nem ninguém as sufoque. Mergulhar dentro de si mesmo, se libertar das amarras da mídia, resgatar os laços familiares, fazer as pazes com a natureza. Sim, é preciso reaprender a sentir o que não se explica para podermos explicar melhor o que não sentimos.
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