segunda-feira, 14 de abril de 2008

CRÔNICA: Olhares na Multidão



Consulto o relógio para ver se dá tempo de olhar outras coisas. O relógio diz que sim. Investigo o tempo para ver se o clima não será hostil à minha caminhada. O Sol não está escaldante e, se chover (segundo as previsões) não será preciso usar guarda-chuva. E assim meu olhar continua em ação, fotografando a realidade que se apresenta para mim e filmando as pessoas que se exibem para os outros, mas não para alguém em especial.

Meu olhar vai percorrendo o mundo que se desdobra a minha volta. De repente, meu olhar se impressiona, se comove, se vê hipnotizado por outros olhares. Olhares na multidão. Olhares de mendigos que pedem esmolas sem estender a mão. De quem já esgotou o estoque de lágrimas para lavar a alma. Olhares que narram pesadelos, que encenam tragédias, que expõem chagas, que refletem dores agudas e profundas.

Aqueles olhares, dispersos na multidão, estão lá, mirando um ponto vazio no espaço. Passamos diariamente por eles, mas raras vezes os vemos piscar, não só porque tendemos a ignorar sua existência, mas também porque tais olhares parecem imóveis, distantes e mortiços. Nossos passos apressados e indiferentes evitam enxerga-los. São capazes até de atravessar a rua apenas para não correr o risco de encará-los de perto.

Um olhar anônimo que carrega e transmite imagens do absurdo. Denunciam tantas contradições. Significam tantas coisas. Uma prece muda. O eufemismo do desespero. A humilhação comportada. A vela agonizante de um semblante perdido na escuridão. Olhares cravados num tempo que conspira a favor de sua extinção. Tentam comunicar algo, mas ninguém atenta para a sua mensagem, como se tivessem se transformado em uma linguagem hieroglífica, portando segredos condenados ao degredo.

E assim o tempo passa. As estações se revezam. As ruas ganham novas maquiagens. O lixo da calçada intensifica o cheiro e exigem o socorro imediato dos garis. O poder público recolhe com eficiência duvidosa os entulhos amontoados na esquina. Porém, aqueles olhares na multidão continuam ali, aterrorizados com governos inermes e cidadãos egoístas, incapazes de perceber que tais olhares ainda são animados por vidas que merecem ser - além de observadas - ouvidas, cuidadas, protegidas, respeitadas, amadas.

Apesar de tudo, da desatenção curável dos transeuntes e da omissão indesculpável das instituições, os olhares na multidão, mesmo que saturados de incompreensão e escassos de expressão, não perdem de todo o brilho derradeiro da esperança. 99% do futuro que tais olharem conseguem enxergar está manchado pelas trevas da miséria e atraído para os abismos da morte, mas 1% ainda tem luz, ainda vê horizontes leves e risonhos.

Você já mirou algum destes olhares por mais de três segundos? Já tentou captar a cor de sua íris? Você já se perguntou quantos canais de lágrimas transbordaram através destas vistas cansadas e abatidas? Já tentou decifrar o sofrimento fatal que emoldura com tonalidades psicológicas de sangue a circunferência alongada, elíptica e disforme de tais olhares. Você já cumprimentou, amparou e dialogou com os olhares na multidão?

O sujeito desses olhares virou objeto. Em outras palavras, é um ser abjeto, desses que amaldiçoam as estatísticas sociais e ninguém faz nada para reverter tal descalabro. Você já teve a curiosidade de contar quantos olhares na multidão existem no seu bairro, no centro da cidade, nas adjacências do viaduto mais próximo, ou mesmo no caminho habitual de seu trabalho, escola, igreja, academia de ginástica ou shopping center. Como seria a sensação de ver e padecer o pior dos pesadelos com o organismo plenamente acordado?

Todavia, se fosse uma mulher bonita, um homem esbelto, um casal apaixonado, uma família de mãos dadas, as pessoas olhariam para tais cenas sem cerimônia nem repugnância. Os mais carentes, inclusive, olhariam até demais, forjando automaticamente alguma fantasia ou deixando escapar pelos poros imperfeitos de sua mente algum pensamento mal contido de inveja. Mas a beleza também tem o seu avesso. Nem sempre aquilo que vemos é normal e aceitável. Há paisagens tristes: olhares na multidão.

Chegue um pouco mais perto. Os olhares deles não assustam nem um mosquito. Não soltam um único palavrão. Esses olhares querem ser vistos por você. Veja a pessoa humana que está atrás desses olhares e também na sua frente. Observe há quantas horas essa pessoa não bebe água, há quantos dias ela não tem uma alimentação digna, há quantas semanas ela não toma banho, há quantos meses ela não corta as unhas, há quantos anos ela deixou de viver; e agora apenas luta, com o restinho que sobrou de sua fé, para tentar sobreviver.

E se esses olhares fossem seus, o que você viria e o que você não viria? Talvez então você desejasse ficar cego para fugir pelo menos da amargura material de ver tanta gente passando por você e sequer te olhar, tampouco sorrir, e quase nunca fazer alguma coisa para te ajudar. Como se você fosse uma formiga que cresceu demais, foi expulsa da espécie animal, esqueceram de enterrar e não encontrou vaga neste mundo que se diz humano – embora qualquer turista civilizado de outros planetas deduziria o contrário.

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