domingo, 30 de março de 2008

CONTO: Espelhos da Desgraça


Já era noite, de um gênero tão silencioso e mórbido que assustava até as corujas veteranas. Apesar de tudo, vez por outra um gemido sombrio e indecifrável ameaçava romper a monotonia reinante, nem que fosse pelo curto intervalo de meia dúzia de segundos. Foi também esse o tempo que José Francisco Antônio das Chagas precisou para concluir que sua atual matéria-prima de trabalho era o reflexo trágico de sua desgraça.

Quem era este homem e por que respirava sensações tão fracassadas e pessimistas? Vamos chamá-lo simplificadamente de Seu Zé das Chagas. Até os 35 anos ele nunca bebera no cálice da miséria. Como os fumantes indiretos que desenvolvem as noções mínimas do cigarro sem jamais ter colocado um só deste produto na boca, Seu Zé - vamos tirar também o “das Chagas” para não tornar as coisas ainda mais deprimentes - já tinha tragado lateralmente algumas pitadas da miséria através da convivência com alguns amigos, cujas biografias tratavam de mantê-los entre os patamares econômicos mais rasteiros e humildes da condição humana (ou, melhor dizendo, aliás, pior dizendo, desumana).

Pois bem, sem maiores comparações melodramáticas, vamos descascar logo o segredo de Seu Zé. Começou trabalhando como caixa de um pequeno mercadinho, até que juntou coragem para denunciar o “caixa dois” operado pelo outro caixa que alternava os turnos com ele. Porém, como o dono do estabelecimento tinha ido bem mais longe, manejando uma espécie de “caixa três ao quadrado”, as versões foram manobradas de tal modo que o corrupto da história acabou sendo o próprio Seu Zé.

Isso posto, sua demissão foi instantânea, inversamente ao alcance de sua inverídica fama de lalau, que grassava como uma epidemia de fogo e parecia contribuir implacavelmente para inviabilizar qualquer nova oportunidade de emprego formal na azarada carreira laboral deste sujeito, desprovido de diploma de nível superior e com o segundo grau tardio, mal-feito e incompleto. Era como se houvessem frases no currículo profissional de Seu Zé que somente os tradicionais e burocráticos setores de Recursos Humanos das empresas contratantes conseguissem ler – algo como “ele não presta”, “não o contrate”, “rasgue o currículo dele” (dentre outras variações não menos preconceituosas).

O tempo foi passando. O dinheiro foi sumindo. A família foi reclamando. A dívida foi se amontoando. Os colegas foram se afastando. A insônia foi se repetindo. A depressão foi se instalando. E, finalmente, a paciência e o orgulho do Seu Zé despencaram para o nível extremo do desespero não-violento (pois nunca ele havia roubado sequer um pirulito). O único filho que tinha foi passar as férias na casa da sogra e curiosamente essas “férias” já duravam três meses e nada de deixarem a criança voltar para o colo do pai.

Seis meses depois que aquela bodega (esqueci de informar que se chamava “boa vida”, título por demais sugestivo) o colocou no olho vesgo e estrábico da rua, a vida de Seu Zé estava arruinada, tanto financeiramente quanto afetivamente, uma vez que sua mulher desaprendeu a conjugar o verbo amar na frente dele. Essa frieza, essa rejeição feminina passou a dominar as relações com o marido desde o dia em que ela fora subitamente impedida de passar o dia no cabeleireiro e a noite no shopping, como tanto gostava de fazer duas semanas sim, uma não. Não deu nem tempo da mulher inventar a desculpa intelectualmente vaidosa que tinha passado numa faculdade qualquer e que não podia mais acompanhar o ritmo ocioso e perdulário de suas companheiras igualmente dondocas. As más línguas não mentiriam se imaginassem que na cabeça angustiada de Seu Zé brotava uns caules pontiagudos em formato de chifre.

A nova residência de Seu Zé não tinha teto, não tinha segurança e não tinha mais mulher. Ele mesmo se convenceu de que o coração de sua ex-amada havia estado sempre dividido: metade se voltava para a conta bancária dele e a outra banda mirava o bolso do infeliz, precisamente quando portava uma carteira recheada com alguma grana. Enfim, a morada contemporânea de Seu Zé não tinha quase nada. Situava-se num terreno baldio duplamente abandonado: pela favela contígua que se urbanizou e pelos traficantes de baixa patente que migraram em busca de refúgios mais estratégicos. O lugar era predominantemente ocupado por duas espécies de seres quase não-vivos: cachorros vira-lata que nunca foram paparicados num ambiente doméstico e banhados numa clínica veterinária; e gente mais ou menos idosa que tinha como principal passatempo esperar a morte chegar (aqueles gemidos revelados no primeiro parágrafo têm a ver com essa rotina da despedida).

Seu Zé, no entanto, apesar de carregar o sobrenome “das Chagas”, queria voltar a ser gente de verdade. Queria voltar a acreditar em si mesmo, reconstruindo os cacos de sua felicidade temporariamente inexistente. Ao ler um livro sem capa intitulado “O que é miséria?”, publicado pela editora “Justiça Social”, ele foi descobrindo que seu futuro era um lixo que precisa ser reciclado. Metade das vinte e quatro horas do seu desafortunado dia era cotidianamente e literalmente dedicado ao lixo. Matéria-prima que, definitivamente, no alvorecer de suas auto-reflexões conscientes e transformadoras, era o espelho de sua desgraça: a imagem vívida e descolorida da tragédia que levou este ex-caixa honesto de uma corrupta mercearia a tentar sobreviver a partir da vistoria mendicante de caixas de lixo. Um espelho que urgia ser quebrado.

Enfim, Seu Zé era uma categoria de lixeiro que, além de vasculhar resquícios de comida e farrapos de roupa entre os detritos, fazia questão de catar livros, cidadania, esperança. Este homem começou a reconhecer e entender, com a devida lucidez e altivez, o sentido catastrófico de sua presente existência. O ato de olhar para o lixo, introduzindo algum farelo na boca e vendendo algum objeto aproveitável na esquina, significava enxergar a face mais triste, cruel e desprezível de sua decadente trajetória. Com uma Bíblia debaixo de um braço (seria a Constituição da justiça espiritual?) e uma Constituição (seria a Bíblia da justiça material) debaixo do outro, Seu Zé acordou, se levantou e foi à luta. Voltou a mudar de endereço e alterou radicalmente suas atitudes. Recuperou uma dignidade pessoal tão grande quanto o tamanho recorde de sua auto-estima, confiantemente reerguida e pujante de vitalidade.

Seu Zé foi convidado a participar da Associação Comunitária ligada ao pequeno e combativo bairro de periferia onde agora ele resida. Em dois anos, tornou-se uma liderança popular respeitada, carismática e empreendedora. Ostentava uma fibra ética ilibada, imune a qualquer retórica de vereador que frequentemente tentava seduzi-lo com recursos fáceis e ilegítimos em troca de seu quinhão demagógico de votos naquela comunidade. Como todo cidadão que se preza (e é prezado, ouvido e valorizado pelos demais cidadãos), Seu Zé readquiriu um trabalho melhor. Conquistou a vaga de professor da creche comunitária de seu bairro e agora, beirando seus quarentas anos mal vividos e bem sofridos, Seu Zé realizou um sonho aparentemente aposentado quando deixou de ser caixa e quase destruído quando se tornou lixeiro: passou no Vestibular para o curso de Educação Social, da Universidade Livre do Ceará.

E ele já alimenta novos planos: ser um professor especializado nos processos de alfabetização e qualificação escolar, conscientização política e reinserção sócio-econômica de adultos desempregados e sem instrução, os quais ainda não conseguiram quebrar os espelhos de sua desgraça, rompendo as algemas de ideologias submissas e estóicas. O primeiro passo já está sendo dado nessa direção: todo sábado, lá está Seu Zé, ensinando voluntariamente as pessoas do terreno baldio (onde ele mesmo se exilara por uns dois anos) a gostarem de ler, a não terem medo de viver e a aprenderem (ou reaprenderem) a ver - em cada pensamento, em cada sentimento, em cada comportamento - o reflexo iluminado e autônomo de sua própria luz.

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