sábado, 24 de maio de 2008

CONTO: Paradigmas do Medo


Noite sombria. Tempos difíceis. Multidões em desespero. O pesadelo não se resume mais à dimensão inconsciente do sono e às angústias conscientes da vigília. O pesadelo invadiu a realidade e não dispensa praticamente ninguém. Apenas 0,1% de toda a humanidade consegue se manter imune a tais influências, desde que a obediência seja total.

O que aconteceu com o planeta? Pergunta um desavisado extraterrestre que teve a ousadia de fazer uma incursão turística em nossas paragens. Todos compreendem o significado perfeitamente lúcido desta dúvida, mas é proibido respondê-la, sob pena de ser severamente punido e carregar seqüelas irreversíveis para o resto da vida.

Tudo aquilo que é falado é automaticamente captado pelo sistema de controle ideológico que governa a Terra, a partir de um sensor ultramoderno instalado na cavidade bucal de cada habitante. Qualquer palavra que ameace a “ética” do poder reinante implica na imediata perda da língua do infrator. É preciso pensar mil vezes antes de falar.

Se, mesmo assim, o sujeito rebelde, ainda que tornado mudo, insistir em protestar por escrito, o mesmo terá suas mãos duplamente amputadas. As leis totalizantes do sistema vigente são de fato tirânicas, imperdoáveis e insensíveis. Esse padrão cruel de censura e governabilidade conferiu à Terra o título de planeta campeão em índices de suicídio.

O princípio soberano que rege o comportamento, as relações, a auto-estima, as decisões e a felicidade das pessoas baseia-se na seguinte premissa: as pessoas são reconhecidas, valorizadas e amadas não pelo que elas são e sonham, mas pelo que elas têm e fazem. Essa é a lógica suprema que vem fundamentando as instituições e costumes do planeta.

O efeito prático dessa doutrina se manifesta com toda força na maneira como seus habitantes são classificados, rotulados e discriminados. Dessa forma, a população é rigorosamente enquadrada em três categorias bem distintas: animanos, humanos e superumanos. O dinheiro e a profissão constituem os fatores de exclusão ou inclusão.

Comecemos pela classe mais primitiva, impedida de qualquer direito de cidadania. Os animanos são uma simplificação literal do termo “animais humanos”. São pessoas (ou semipessoas, como lhes designam, vulgarmente, as outras classes) que ganham até dois salários mínimos por mês e que não possuem diploma universitário de graduação.

Já os humanos são aqueles que detêm uma renda comprovada de dois salários mínimos a um milhão de almeiros (unidade-padrão financeira), e que apresentam algum título de graduação. A partir desta classe, as pessoas podem pleitear a carteira de cidadão, o que lhes permite votarem, exercerem cargos de chefia e serem chamados pelo nome.

Por sua vez, a categoria dos superumanos restringe-se somente aos seres privilegiados que ostentam uma renda superior a um milhão de almeiros e que conquistaram o título acadêmico de doutores. Caso seus integrantes falem coisas indevidas, eles não perdem a língua, mas regridem à condição de inumanos, perdendo suas rendas e seu título.

Quando esse novo paradigma foi instituído, à luz daquela máxima que apregoa que as pessoas são respeitadas unicamente pelo que elas têm e fazem, espalhou-se a crença popular de que a alma das pessoas é determinada por seu patrimônio financeiro, fazendo então com que os ditos almeiros desbancassem o antigo apogeu dos dólares.

Esta divisão gera uma série de hábitos, tradições e condutas discriminatórias, que foram disseminadas de maneira coercitiva e se tornaram dogmas culturais inquestionáveis. Por exemplo, diferentemente dos cidadãos (humanos e superumanos), os inumanos são denominados friamente e legalmente por números, jamais por nomes próprios.

Vale a pena mencionar os tipos de vestuários, os quais simbolizam bem este regime de segregação. Os animanos são obrigados a usar roupas velhas, feias e rasgadas, enquanto que cabem livremente aos superumanos o uso de vestimentas novas, elegantes e coloridas. Já os humanos devem utilizar trajes básicos, pouco sofisticados e de uma cor só.

A religião, prática vedada aos inumanos, é estritamente materialista e funcional. A geração mais jovem costuma cultuar os deuses do mercado, como o deus-do-produto, o deus-do-serviço e o deus-do-consumo. Já a geração mais idosa gosta de reverenciar os deuses da profissão, como o deus-da-medicina, o deus-do-direito e o deus-da-engenharia.

Nunca a injustiça se banalizou tanto e se tornou tão hegemônica. O capitalismo cumpriu a sua pior missão. Adquiriu um estatuto divino, absoluto e sem precedentes. O novo milênio foi saudado pelas promessas de desenvolvimento sustentável. Porém, no limiar do século XXII, esse adjetivo se tornou uma piada sem graça, um consolo deveras impossível.

Depois que os paradigmas do medo assumiram seu império, o fim da Terra, a continuar nesse ritmo irrefletido, passou a ser uma questão de séculos. Nessa fatal conjuntura, só é permitido falar em desenvolvimento suportável. Professar anseios maiores é perigoso, pois pode ser interpretado de forma antipática pela censura, que não poupará línguas nem mãos.

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