sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

DESCRIÇÃO: Sensível Revelação


Passo tanto tempo presa, que geralmente esquecem de minha existência. Mas quando apareço, domino a atenção de todos os olhares. Meus gestos são pura eloqüência. Quase todo mundo que me vê se curva aos meus apelos irresistíveis e eventualmente sensacionalistas. Retribuição nada mais justa e compensadora para alguém que ás vezes passa anos sem se manifestar para o mundo exterior.

Sou a testemunha mais assídua dos piores dramas humanos. Praticamente nenhum divórcio entre cônjuges que juravam nutrir algum amor recíproco dispensa meus cumprimentos, ou melhor, minhas despedidas, já que costumo assinalar o desfecho de uma história a dois (ou quem sabe a três, considerando que a amante ou o amante pode ser o pivô detonador e irreconciliável deste desenlace).

As crianças, especialmente, são as que menos têm vergonha de mim. Me solicitam tanto que por vezes me banalizam e até me corrompem, fazendo os outros acreditarem que eu sou uma farsa. Mas as perdôo, pois sei que o fazem sem maiores prejuízos. Por outro lado, os adultos aparentemente equilibrados e impecavelmente racionais são os que mais me temem, me evitam e me reprimem.

Com extraordinárias exceções, posso dizer que vivo no mais obscuro anonimato, mas quando entro em cena procuro tornar este momento triunfal e por vezes inesquecível; seja evocando as mais transbordantes alegrias, quer relembrando os mais tempestuosos traumas. Acertou quem descobriu que tenho tendências megalomaníacas. Como tenho ascendência humana, orgânica, assumo que também tenho defeitos: me julgo frequentemente mais importante do que realmente sou.

Eu preciso do mundo para desabrochar, para me revelar, exercendo minha plenitude antes de me perder no infinito da atmosfera material. Ou seja, o instante mais feliz da minha imprevisível trajetória, o gozo supremo e sacrificante de minha existência – paradoxalmente – também representa minha decomposição, meu desaparecimento, minha morte. Quando isso acontece comigo, nunca talvez a fronteira entre o apogeu e a catástrofe assume feições tão tênues, próximas e ambíguas.

Numa dependência ainda maior, estou convencido de que o mundo sempre precisará de mim. De meus sinais universais, meus impactos imediatos e sobretudo minha sinceridade exemplar. Sou a cura gratuita das dores irracionais, o mensageiro fiel das felicidades inesquecíveis. Sou a bandeira das revoluções sentimentais, o desespero das tragédias inevitáveis. Enfim, sou a lágrima: a confissão sublime das revelações sensíveis.

Como a humanidade seria insossa e monótona sem a minha participação. Como a arte seria abstrata e rarefeita sem minhas influências. Como a saudade seria incompleta e amarga sem o meu consolo. Como o amor seria insensível e impessoal sem a minha intercessão. Como as vitórias seriam discretas e vulgares sem as minhas homenagens. Como a paixão seria mecânica e comportada sem as minhas erupções. Como a tristeza seria inexpressiva e desinteressante sem a minha contribuição.

0 comentários: